Toda narrativa do autor é baseada em fatos ou à partir de experiências vividas em seus 64 anos...

Romance: Mademoiselle Zaira

Por Mario Vicenti

EFÊMERA JUVENTUDE

1. Um anjo da guarda

É setembro de 1957 e mamãe está sentada na soleira da janela, tão silenciosa que quase não ouço o coração dela bater. Parece desconfortável, mas é um de seus lugares prediletos, onde costuma passar um bom tempo pensando na vida e admirando o horizonte cada vez mais longe de seus desejos. Ela gosta de ficar assim e sempre permanece nesse estado até que alguém a interrompa, ou para chamá-la para o café da manhã, ou para receber a visita de irmã Selina. Eu não gosto desse jeito absorto, embora isso já não me deixe mais apreensivo, como acontecia no início, até porque agora ela me aceita. Resignada, mamãe tenta recuperar uma afinidade que não teve nos primeiros meses, quando a rejeição a dominou depois de ter tomado conhecimento de minha inesperada existência. Estou com seis meses de vida em seu imaculado ventre e não gosto de me lembrar daqueles primeiros meses, tamanha agonia e temor que senti por conta do comportamento rebelde dela, quando estava perdida por ter sido abandonada pela família, ou melhor, empurrada para as muralhas da fé. Mas adoro quando conversa comigo despretensiosamente e me faz carinho, passando suas delicadas mãos, em círculo, por sua própria barriga; às vezes mamãe até canta belas canções, que nos remetem a momentos de paz e harmonia.

Meu esboço de gente tem estado na esteira dos sentimentos dela, onde vivo de acordo com a prostração transmitida pelo ar que ela respira. Apesar de toda a sua indignação e seus rompantes de mau humor, nossa vida é boa se comparada aos primeiros meses. Ainda tento me aninhar em seu frágil corpo em busca de conforto, se é que existe alguma posição cômoda dentro dessa redoma com quase um litro de água que me protege e me alimenta. O mais longe que posso ir é me contorcer de um lado para o outro. Às vezes, puxo o pé até a boca para me exercitar. Chupar o dedo já é uma constante quando mamãe está conversando, ora comigo, ora com irmã Selina, nosso anjo da guarda. Nos primeiros dois meses, eu era semelhante a um embrião parasita em seu corpo de adolescente, mas ela não me sentia. Talvez por isso tenha cometido algumas insanidades no começo dessa via-sacra. Agora, tenho forma de gente, mesmo com os pulmões ainda em formação, e contínuo na dependência dela.

Ela me conta tudo em suas reclamações incansáveis sobre quando chegou ao convento, ficando tão desnorteada que perdeu a noção da própria existência e de que de nada adiantava ser filha de um rico empresário de Sollares, a cidade mais antiga do Paraná, com um porto em crescente movimento. Mamãe não teve o direito de se defender das acusações e humilhações pelas quais passou depois da minha concepção. Simplesmente foi largada à mercê do destino aqui, lugar que ela chama também de internato.

Entretanto, ela reconhece a sorte de estar com seu anjo da guarda. A freira, a irmã Selina de quem ela tanto fala, já nos salvou inúmeras vezes. A primeira foi quando mamãe tentou se suicidar engolindo uma infinidade de comprimidos. Ela se responsabilizou desde então, com muito zelo e dedicação, por nossa permanência no convento. É irmã Selina quem consegue amenizar o sofrimento de mamãe, em todas as ocasiões em que ela se sente abandonada pela família. A freira convenceu a madre superiora, indo de encontro ao clima sisudo do convento, a aliviar as outras tarefas a fim de se encarregar somente do nosso caso. Isso ocorreu no terceiro mês de gravidez, quando vivíamos um martírio diário. Que bênção!

Sem a ajuda de irmã Selina, a vida de mamãe no convento fica insuportável, pois esse tipo de situação não é aceito pela madre superiora, muito menos pelas demais internas, mesmo tendo sido selado um acordo entre madre Constância e Haroldo, um pai que nem quis saber como a filha engravidou e que, sem pestanejar, tratou de escondê-la para preservar a si próprio. É por essa e outras razões que ela não se conforma em permanecer neste lugar, isolada, quando poderia ter ficado em sua própria casa no litoral. Sua vida, mesmo aos 15 anos de idade, teria mais sentido se encontrasse o apoio familiar. Por isso, muitas vezes sinto sua profunda tristeza quando o amargo de uma lágrima penetra em nosso cordão no fel da desilusão.

Pelo que escuto minha mamãe contar, a maioria das internas nem sequer acena ou a cumprimenta. Elas apenas olham de soslaio, com indignação, e agem como se mamãe fosse portadora de lepra ou qualquer outra doença contagiosa. Até mesmo as noviças viram a cara ou apontam o dedo indicador, querendo jogá-la às feras. Pelo menos, em meio a esse turbilhão de obstáculos, ela tem um calendário letivo especial, que cumpre individualmente, para seguir seus estudos. Três tardes na semana, recebe aulas particulares de francês, além da permissão para fazer as refeições dentro do quarto. Tudo isso, claro, graças à insistência de Selina, nosso anjo da guarda. Nestes últimos dias, ela pode respirar mais aliviada, com a esperança de que em breve vai resgatar sua vida normalmente e sem medo daquelas assombrações que já a fizeram perder noites de sono.

Ainda que o tempo passe aos trancos e barrancos por causa das difíceis circunstâncias, mamãe acorda, esporadicamente, indisposta, angustiada e ainda revoltada com a situação em que está. Parece que hoje, pelo seu silêncio, sem ao menos dizer um “bom-dia” ou perguntar como estou, vai ser mais um daqueles dias de clima bucólico, em que a tristeza invade seu âmago. A nostalgia despertou com ela nesta manhã de sábado, pois parece que ela busca através da enorme janela um fio qualquer que a conduza de volta à sua adolescência e às alegres aventuras que viveu em Sollares, com suas belas praias e ilhas desertas.

Esse sentimento angustiante dissipa-se depois da pontual visita de irmã Selina. Na verdade, é agora que nosso dia começa, após as conversas entre elas e, claro, comigo também. Depois do café há a caminhada, e mamãe anda feito uma pata choca, lenta como um elefante, mas tudo isso ameniza nosso dia, que vai se enchendo de boas recordações, as quais povoam nosso espírito tal como o cantar do passaredo ao redor de todo o pátio do convento.

A esquerda, capa do livro impresso e a direita, capa livro digital. Quer receber o livro pelocorreio sem custos? Envie um email para o autor com seu endereço e o motivo de querer ler o romance.

Abaixo, uma amostra do primeiro capítulo... boa leitura!